Categorias

É o fim do mundo


 Cada Apocalipse esconde num bolsinho secreto o seu Milenarismo, a sua esperança de vida longa e renovada


Triunfo da Morte, de Pieter Bruegel

ALCIR PÉCORA

As imagens impressionantes da Marcha para Jesus, organizada pela Igreja Renascer em Cristo, que levou ao menos um milhão de participantes para as ruas de São Paulo, me conduziram quase naturalmente à ideia de comentar um livro lançado agora na Itália, cujo título é Arriva la fine del mondo (e ancora non sai cosa mettere), ou seja, algo como “Chegou o fim do mundo (e você ainda não sabe o que vestir)”.

O autor desse pequeno volume cômico é Roberto Alajmo (Palermo, 1959), jornalista da Rai, colaborador de La Repubblica e Il Mattino, e também autor de contos, romances, comédias teatrais e até de um libreto de ópera – salvo engano, nenhum dos quais traduzido para o português. E nada que seja imprescindível, ao que parece, embora Alajmo tenha levado a cabo ao menos uma ideia assinalável: em 1995, produziu um repertório dos doidos da cidade de Palermo, cujo êxito levou a que se tenha constituído uma equipe, sob sua direção, com o propósito de redigir uma enciclopédia dos doidos da Itália.

No livro recém-lançado, Alajmo inventaria as profecias apocalípticas do século 21, que se intensificam quanto mais se aproximam do fatídico ano de 2012, um verdadeiro marco do tema desde quando se divulgou que o calendário maia suspendia a história humana no corrente ano. Curiosamente, no dia 21 de dezembro de 2012, o sol se encontrará na posição central da Via Láctea, o que só teria acontecido há 26.000 anos atrás. “Jesuscidência”, como prevê o juízo de Rosane Collor? 

E o que pensa a respeito o milhão de pessoas em marcha “para” Cristo? Por outro lado, cientificamente, o que essa centralidade solar comprova? Aparentemente nada, mas o que sabe ou pode a ciência diante do pavor do futuro e da urgência do desejo de “renascer” em Cristo ou em qualquer refúgio seguro, ainda que menos glorioso, face ao desastre iminente?

De resto, é sabido que a própria ciência não tem sido avara em sua contribuição para a atual onda de “finismos”; dos dez sistemas biofísicos que garantem a sobrevivência na Terra, artigos publicados na revista Nature teriam alertado para o fato de que dois deles estão além do limite crítico (biodiversidade e ciclo do nitrogênio), três estão com o pé nesse limite (acidificação dos mares, taxa de ozônio da estratosfera e mutações climáticas) e dois outros, a um passo dele (reserva de água potável e taxa de poluição).

Já no universo da pseudociência, o inferno do Apocalipse é paradoxalmente ilimitado: faz-se cálculos sobre inversão dos polos e parada da rotação terrestre, especula-se sobre acidentes nucleares já ocorridos ou em vias de ocorrer, e especialmente murmura-se sobre vírus, epidemias, pandemia. Neste último quesito, para lembrar apenas dos últimos anos pós-Aids, já tivemos a vaca louca, a gripe aviária e ainda estamos no rescaldo da gripe suína, numa estranha espécie de vendeta animal contra o homem.

Curiosamente, não escapam do clima de cerco, de estado de sítio, sequer os novos biliardários do Vale do Silício. Até eles, que imaginávamos como fiança e reserva do futuro, apresentam uma das mais originais contribuições ao pânico finista: o Singularismo. 

Profetas da informática já anunciaram que, em 2030, a inteligência artificial superará a natural e que, em 2045, a raça humana, se não for extinta como culpada por gestão predatória do ambiente, estará sob definitivo domínio das máquinas, melhores e menores do que ela. Então terá início uma nova Era do mundo, única, irreversível – por isso mesmo chamada de Era da Singularidade. (Oh, Padre Vieira, será que o V Império do Mundo ainda encontrará ocasião para se reciclar?)

Ou seja, cada Apocalipse esconde num bolsinho secreto o seu Milenarismo, a sua esperança de vida longa e renovada, senão eterna. É exatamente o que o torna tão mais assustador, porque mais sedutor. Afinal, não será o Apocalipse uma contribuição à clareza, um ponto de discriminação? 

Quem sabe se, ao cabo do fim, eu ou a minha turma não nos encontremos a salvo, num mundo melhor? É o que Alajmo chama de “vertigem do Apocalipse”: um desastre que repugna e atrai ao mesmo tempo.

Há tantas outras modalidades de fim de mundo iminente, na qual crendice, pseudociência e cacos de realidade se misturam: Grande Depressão financeira já em curso, corrupção generalizada do sistema econômico-político, desorganização da economia mundial com o avanço incontrolável da China e dos emergentes; e ainda: terremotos, tsunamis, erupções vulcânicas, desastres de toda sorte que talvez já ocorram ocultamente sob a crosta terreste. 

Mas também, e ainda pior, parece haver ondas de suicídios, chacinas e massacres – a começar no círculo da família e dos amigos, alastrando-se pelo ambiente de trabalho e pelo próprio bairro, na sequência inesperada de brigas banais e tumultos espontâneos e prosaicos.

Este último ponto parece revelar um dos aspectos mais íntimos e perversos do finismo contemporâneo: conquanto extensiva ao mundo, a percepção da crise é basicamente individualizada, sem qualquer sustentação na velha consciência de classe. 

Os principais antagonistas dos que saem às ruas para protestar, atirar ou saquear não são os altos dirigentes dos Estados ou as suas classes dominantes, mas sim os que dividem o mesmo espaço vital. Nesse tipo de batalha doméstica, a questão é o despojo da gente ou da loja que está ao lado: um parente que se trucida, ou um micro-ondas que se leva já para casa tem mais apelo que a longa luta jurídico-política pelos direitos civis ou pela garantia de emprego para os camaradas no futuro.

Quer dizer, a luta de classes parece estar sendo superada pelo ódio entre vizinhos, pela porrada direta e reta naqueles que estão ao alcance da mão. Os tumultos desse tipo, portanto, têm inexoravelmente um fundo reacionário. No mais das vezes, trata-se de uma espécie de luta no interior do que Alajmo chama de “ínfima burguesia”, ou ainda de escaramuças de um “pós-proletariado” de ociosos, hooligans e desempregados locais contra um “neoproletariado” de imigrantes e ciganos, recentemente chegados à urbe. É uma simplificação certamente, mas esclarecedora da prevalência atual dos componentes irracionais e desorganizados dessas explosões urbanas ou suburbanas.

O mesmo raciocínio de Alajmo aplica às ocupações universitárias que se tornaram correntes. Longe de progressistas, têm objetivos fáceis, à mão (o que explicaria o chocante ataque a professores, ocorrido há pouco na Unifesp, por exemplo; ou as barricadas em campi desarmados, bem longe das ruas, ou dos centros de poder do Estado). 

Ações que, para Alajmo, têm papel funcional como válvula de escape, obliterando um exame mais aprofundado dos problemas reais em questão, o que fatalmente colocaria na berlinda os objetivos racionais e a representatividade democrática não apenas das instituições, mas também das próprias manifestações contra elas.

Triste cenário? Certamente, mas Alajmo se limita a pintá-lo com as tintas do humor negro e do sarcasmo, de modo que quanto pior fica a narrativa dos eventos, mais o leitor se vê compelido a enxergar o ridículo da situação e, de alguma forma, a rir de si mesmo. 

O que também contém vagamente uma ideia de terapia, pois, na perspectiva do autor, o Apocalipse se resume basicamente ao medo diário, isto é, à própria expectativa trivializada do Apocalipse – o que vestiremos para esperá-lo? 

A banalização catastrofista é, portanto, apenas um reforço da narcotização ordinária da inteligência, do torpor quotidiano do bom senso e da perda diária, tijolo a tijolo, do “muro da vergonha”. Evidentemente, Alajmo, como bom cômico, é também um moralista.
alcirpecora@revistacult.com.br

 Fonte: http://revistacult.uol.com.br/home/2012/08/e-o-fim-do-mundo/

Acesso: 08/09/12
Blog Widget by LinkWithin

0 comentários:

Postar um comentário

Gostou do que encontrou aqui?
Comente este artigo que acabou de ler.
E não esqueça de recomendar aos seus amigos.

Related Posts with Thumbnails