Depositando as feridas aos pés da cruz |
Isabelle Ludovico
É muito difícil olhar para dentro de si e reconhecer que há feridas de
rejeição, abandono, incompreensão, negligência, eventualmente até maus
tratos e abusos. É dolorido perceber que estas feridas foram feitas
pelas pessoas mais próximas: pais, parentes, pessoas que deveriam ter
cuidado de nós, nos acolhido e protegido.
No entanto, Jesus traz uma
boa notícia quando afirma que “... Nada há, fora do homem que, entrando
nele, o possa contaminar. Mas é o que sai dele que o contamina...
Porque é do interior do coração dos homens que saem os maus
pensamentos, os adultérios, as prostituições, os homicídios, os furtos,
a avareza, as maldades, o engano, a lascívia, a inveja, a blasfêmia, a
soberba, e a loucura. Todos estes males procedem de dentro, e
contaminam o homem” (Mc 7.1-23).
Cristo nos afirma que este mal não precisa nos contaminar. Em
primeiro lugar, não somos responsáveis pelo que o outro fez, mas apenas
pelo que fazemos com o mal que nos fizeram. Podemos tentar fazer de
conta que não existe, negar que tenha nos machucado, justificar aqueles
que nos feriram e assumir a culpa deles.
Neste caso, somos candidatos a
doenças físicas, dor de estômago, enxaqueca e outros distúrbios que não
passam de somatizações das emoções reprimidas. Ou nos tornamos
extremamente perfeccionistas para garantir o reconhecimento do outro e
tentar evitar novas agressões.
Outra alternativa destrutiva é abrigar este mal, remoêlo,
perpetuá-lo, ou seja, alimentar a ferida para punir o outro ou para que
tenham pena de nós. É a atitude do deficiente que acentua sua
deformação para pedir dinheiro na rua.
Podemos ainda revidar e, com
isto, nos assemelhar justamente àquilo que repudiamos. Tornamo-nos
pessoas amargas, críticas e agressivas. Nestas três hipóteses, o mal
venceu, pois conseguiu nos contagiar. Nós nos machucamos e machucamos o
outro a partir destas feridas não curadas.
Desenvolvemos mecanismos de
defesa e ataque que fazem de nós pessoas perigosas, como o terrorista
que mata para vingar a morte de amigos e parentes.
Mas existe um caminho de cura que passa pelo reconhecimento da
amplitude do mal e o perdão fundamentado na atitude de Jesus na cruz.
Vencer o mal com o bem é resistir ao mal, recusar-se a deixar que ele
tome conta do nosso coração, deforme nossa auto-imagem e nos leve a
desistir de amar e ser amado.
Deus nos capacita a digerir os
pensamentos e as emoções que nos assaltam quando depositamos todas
estas feridas aos pés da cruz. A vitória que Ele já conquistou também é
nossa se escolhemos o bálsamo e o antídoto do seu amor.
É importante reconhecer no nosso íntimo a tentação de sucumbir
ao mal, de deixar-nos abater e até destruir por ele. Somos tentados a
desconfiar do amor de Deus por ter deixado acontecer aquele sofrimento.
A vida nos parece absurda e perdemos o desejo de viver.
Mas quando
consideramos que até Cristo foi alvo da maldade humana e não fugiu, nem
cedeu ao ódio, mas, pelo contrário, reafirmou o seu amor incondicional,
somos encorajados a seguir suas pegadas e atravessar o vale da sombra
da morte porque encontramos nEle esta fonte inesgotável de amor.
Assim,
levantamos a cabeça e nos dispomos a encarar a vida de peito aberto,
com sua porção de sofrimento, mas também de alegria, de realizações, de
presentes a serem desfrutados.
Tive a oportunidade de acompanhar em terapia algumas mulheres
que foram abusadas pelo pai na sua infância. Esta é talvez a ferida
mais perversa e devastadora, pois ela priva a criança de vínculos
essenciais para a sua existência.
Ela é violentada justamente por
aquele de quem esperava afeto e proteção. Perde também o suporte da mãe
por medo de se abrir ou, pior, porque a mãe torna-se cúmplice através
de seu silêncio e omissão. A criança tende a assumir a culpa pela
atitude dos pais e se sente um lixo.
Entrar em contato com esta ferida requer muita coragem, mas permite perdoar-se pelas tentativas equivocadas de lidar com a situação. Indo ao encontro desta criança envergonhada, cada mulher pôde reconciliar-se consigo mesma, resgatar a espontaneidade e criatividade perdidas, descortinar novos horizontes, amar e ser amada.
Fonte: www.revistaenfoque.com.br/index.php?edicao=67&materia=661
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