Em seu 4º centenário, a tradução pedida pelo rei James é sucesso editorial creditado a vendedores pracistas, em trânsito por hotéis
José de Souza Martins
Numerosos eventos, no correr deste ano, na Grã-Bretanha, nos Estados Unidos e em outros países de língua inglesa, celebram o quarto centenário da versão da Bíblia comissionada pelo rei James. Em junho, na Igreja de Santa Maria Maior, a igreja da Universidade de Cambridge, um seminário aberto ao público reunirá especialistas em história e em literatura para analisar essa versão da Bíblia que é reconhecida como o mais nobre texto da prosa inglesa. Eventos como esse estão ocorrendo em Oxford desde janeiro e em outros lugares do Reino Unido. Desde o início do ano, a BBC vem transmitindo eruditos programas sobre essa efeméride literária e histórica, além de religiosa.
O rei James I, filho de Maria I, católica, sendo rei da Escócia, assumiu o trono inglês com o falecimento de Elizabeth I, anglicana. Era um erudito, amigo de autores como Shakespeare. Em 1604, durante três dias, reuniu no Palácio de Hampton Court, em Londres, um grupo de especialistas para projetar e realizar uma tradução da Bíblia para a língua inglesa, um trabalho que se estenderia até 1611. Uma comissão de 54 tradutores e revisores foi formada, constituída de sábios e especialistas de Oxford, Cambridge e Westminster, gente das duas grandes universidades e da Igreja da Inglaterra. Numa sociedade convulsionada por guerras religiosas, que eram guerras sociais e políticas, adversários religiosos queimados vivos em diferentes lugares do país, aquela tradução da Bíblia acabou se impondo como um fato político sobre a guerra das ideias. Ela expressava a lucidez de um monarca culto e teórico da monarquia. James I era também James VI da Escócia, e na Escócia conhecera as tensões políticas decorrentes das divergências dos puritanos, presbiterianos e não conformistas. John Knox, fundador do presbiterianismo escocês, convivera com Calvino em Genebra e levara para a Escócia, no fundo, uma igreja republicana. O livre acesso à Bíblia em língua vernácula era parte desse republicanismo de base.
A primorosa Bíblia do rei James legitimava a Igreja da Inglaterra e o rei como seu cabeça. Uma boa indicação nesse sentido foi o dilema quanto a certas palavras, quanto a que tradução dar ao ajuntamento dos fiéis: "igreja" ou "congregação". "Igreja" traduzia melhor a dimensão de poder e autoridade que se pretendia dar à instituição, algo mais próximo do catolicismo do que do protestantismo. "Congregação" refletia melhor o puritanismo protestante e seu republicanismo ao pôr a ênfase não na instituição, mas no ajuntamento republicano do povo e, portanto, no membro da igreja. A Bíblia do rei James consagra a dimensão revolucionária que há no livro sagrado em vernáculo. Mas é ao mesmo tempo a Bíblia da ordem, não só religiosa. Sem propriamente legitimar enrijecimentos sociais tão característicos das sociedades estamentais, como era a inglesa e foi a nossa, expressa essa característica tão própria da sociedade inglesa e da sociedade moderna que é a de mudar para permanecer.
A celebração literária e histórica da Bíblia do rei James tem sua razão de ser não só nesses motivos históricos. Ela se tornou um texto referencial da língua inglesa e da lógica discursiva das sociedades anglo-saxônicas, algo como Os Lusíadas, de Camões, para a língua portuguesa. Ou La Divina Commedia, de Dante, para a língua italiana. Ou Don Quijote de La Mancha, de Cervantes, para a língua espanhola. Textos referenciais da língua, da fala, e também dos respectivos imaginários e modos de pensar.
O título de um programa sobre o tema, transmitido pela BBC, Quando Deus Falava Inglês: a Feitura da Bíblia do Rei James, é bem indicativo do fato de que essa versão da Bíblia tornou-se o mais poderoso instrumento da expansão da visão anglo-saxônica do mundo e da vida e o cimento do padrão de civilidade que acompanhou a disseminação internacional dos negócios ingleses, primeiro, e americanos, mais tarde. Essa versão da Bíblia continha também as bases referenciais das categorias da modernidade. É de pouco a bela retórica bíblica de Barack Obama em sua campanha eleitoral. O rei James foi um de seus principais eleitores. Sem a Bíblia do rei James, Obama não teria dado o que é de certo modo a cor profética de sua ascensão ao poder.
As versões vernaculares da Bíblia tiveram a histórica função de abri-la à compreensão de multidões em muitos lugares do mundo. A versão em português até hoje de grande popularidade, sobretudo entre protestantes, é a de João Ferreira de Almeida, do século 17. Português, sobrinho de padre, emigrou para a Holanda e lá se tornou membro da Igreja Reformada Holandesa e tradutor da Bíblia. Foi dela que se valeram os primeiros missionários protestantes que vieram para o Brasil, ingleses e americanos, cuja missão praticamente se resumia em distribuir gratuitamente exemplares da Bíblia. Apoiavam-se no pressuposto de que a Bíblia falava por si mesma, o que é bem protestante.
Um dos impactos significativos e emancipadores da distribuição da Bíblia no Brasil, na versão de Almeida, foi o da sua aceitação pelas mulheres. Prisioneiras de uma tradição de confinamento e dependência, própria da família patriarcal, as convertidas tornaram-se cidadãs de suas igrejas antes de o serem da República. Antes mesmo que a República acordasse para a igualdade jurídica e cidadã das mulheres, o que só aconteceria provisoriamente em 1932 e se confirmaria em 1934, quando uma primeira mulher foi eleita deputada federal, a médica paulista Carlota Pereira de Queirós.
Ao professarem a fé, as mulheres adquiriam o direito de voto na escolha de oficiais e ministros de suas igrejas, ainda que se defrontassem com restrições para o exercício do ministério religioso. Nem por isso, pastores (e também padres) deixaram de invocar no rito matrimonial, e o fazem até hoje, aquele versículo 24, do capítulo 5, da Epístola de Paulo aos Efésios: "De sorte que, assim como a Igreja está sujeita a Cristo, assim também as mulheres sejam em tudo sujeitas a seus maridos". O seu uso deplorável em cerimônias de casamento nos dias atuais acaba sendo um descabido insulto à mulher e o é também ao homem. Na própria modernidade que se anuncia nas motivações das versões vernaculares da Bíblia seria mais apropriado evitar esse versículo e reconhecer que mulheres e homens são sujeitos a sua consciência e não a outra pessoa.
Tanto a Bíblia do rei James quanto a de João Ferreira de Almeida estão parcialmente contidas na edição bilíngue do Novo Testamento encontrada nas gavetas dos criados-mudos dos hotéis do Brasil e de Portugal. São distribuídas pelos Gedeões Internacionais, que desse modo disseminam o livro, que acaba lido como obra literária pelo valor das traduções. Sua organização nasceu nos EUA, em 1899, por iniciativa de três evangélicos que eram negociantes itinerantes. Eles aproveitavam suas viagens para deixar Bíblias nas gavetas dos hotéis em que se hospedavam. A distribuição gratuita da Bíblia do rei James conjugada com as traduções locais encontrou na rede comercial de vendedores pracistas um emblemático indicador da relação entre religião e expansão da economia.
Aqui no Brasil o interesse literário e linguístico pelas traduções da Bíblia se manifestou em várias ocasiões, estimulando uma postura ecumênica em face do texto religioso, mas em nome de cuidados predominantemente estéticos e científicos. No período mais recente, a tradução da Bíblia de Jerusalém contou com a participação de católicos e protestantes, pesquisadores e professores de várias universidades, vários da USP.
Entre nós é significativo o fato de que a USP tenha tido uma linhagem de três gerações de linguistas protestantes, um deles, Isaac Nicolau Salum, da equipe de tradutores da Bíblia de Jerusalém. Interessaram-se eles, desde Otoniel Mota, que no início do século 20 era pastor e missionário no sertão de São Paulo, pela fala caipira, prenhe de palavras arcaicas tão presentes na tradução de Almeida. O que me ajuda a entender o que me contou Francisco Julião, líder das Ligas Camponesas: seu discurso político-ideológico aos camponeses não tinha o menor impacto. Passou a ter quando alguém lhe sugeriu que usasse a Bíblia, o imaginário e o vocabulário bíblicos para se comunicar com essas populações ainda situadas culturalmente nos tempos pretéritos do Brasil Colônia e da dialética bíblica do padre Antônio Vieira.
JOSÉ DE SOUZA MARTINS, PROFESSOR EMÉRITO DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO, É AUTOR DE A SOCIABILIDADE DO HOMEM SIMPLES (CONTEXTO)
Fonte: www.estadao.com.br/noticias/suplementos,biblias-de-criado-mudo,700837,0.htm
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