FABIANO MAISONNAVE
Na véspera de embarcar a Roma, o presidente da CNBB (Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil) e arcebispo de Aparecida, dom Raymundo
Damasceno Assis, disse que a renúncia do papa Bento 16 representa um
"gesto profético" diante das divisões internas da Igreja Católica
provocadas por "carreirismo".
O presidente da CNBB e arcebispo de Aparecida, dom Raymundo Damasceno Assis |
"Cargo na igreja não é honra, não é poder no sentido como entendemos, de
opressão às outras pessoas ou de ser favorecido pelo cargo. Nesse
sentido, a sua renúncia é um gesto profético", disse à Folha dom
Damasceno, 76, um dos cinco cardeais brasileiros que estarão no
conclave, a ser realizado logo após a saída de Bento 16, nesta
quinta-feira.
Anfitrião do papa durante visita ao Brasil, em 2007, dom Damasceno disse
que o principal legado do pontífice alemão será o seu magistério e que,
apesar de grande intelectual, deixa uma lição de humildade e
simplicidade.
Antes, em missa celebrada às 8h, dom Damasceno havia exortado a uma
basílica lotada a pedir a Deus que os cardeais "possam também estar
abertos aos sinais dos tempos de hoje" durante o processo de escolha
para o novo papa.
O cardeal também falou em entrevista coletiva, quando endossou a recente
crítica do papa à "hipocrisia dentro da igreja": "Muitas vezes, você
prega, anuncia e nem sempre vive o que está pregando".
Também ali, dom Damasceno admitiu que "há pessoas em que eu penso mais"
para o papado, mas que só decidirá o seu voto durante os encontros em
Roma: "Ninguém tem uma estrela na testa para ser identificado como o
candidato ideal".
A seguir, trechos da entrevista concedida à Folha:
Folha - O que significa "sinais dos tempos" para o senhor?
Dom Raymundo Damasceno Assis - Significa mudanças profundas que todos nós experimentamos.
Dom Raymundo Damasceno Assis - Significa mudanças profundas que todos nós experimentamos.
Estamos falando hoje de uma mudança de época, e
não de uma época de mudanças. Não são mudanças superficiais, mas que
atingem a pessoa, os seus valores, o seu modo de viver, o seu estilo de
vida, a sua maneira de julgar as coisas e de se relacionar com Deus, com
o próximo, com a natureza.
O avanço das comunicações está afetando as pessoas no comportamento, nos
valores, nas relações. Basta pensarmos hoje no celular, na internet, em
todos esses meios modernos de comunicação, blog, YouTube etc.
Há a crise pela qual a família passa, o modelo de família hoje. São
muitas as mudanças que estamos enfrentando, e a igreja tem de estar
atenta a isso. São sinais dos tempos que nos falam também e que,
portanto, o papa e nós, os bispos, temos de estar atentos para responder
pastoralmente.
São muitos os desafios, não podemos desconhecer que a igreja também vive
neste mundo, numa realidade histórica, não é só humana e divina.
E a
missão da igreja é responder a esses desafios com o anúncio do
Evangelho. Sem perder a fidelidade do Evangelho, mas tem de atualizá-lo.
Como fazer? Com que linguagem? De que maneira? Esses são os grandes
desafios que nós temos pela frente.
Qual legado o papa Bento 16 deixará para a igreja?
Ele nos deixa um legado muito rico quanto ao magistério. Grande teólogo,
grande pensador, mesmo antes de ser papa, como sacerdote, como
professor em uma das principais universidades da Alemanha. Depois, como
cardeal em Munique e prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, ele
publicou muitos textos, muitos livros.
Como papa, infelizmente não deixou as três encíclicas que esperávamos.
Deixou uma sobre a caridade, sobre a esperança, mas faltou a encíclica
sobre a fé. As homilias, as audiências gerais às quartas-feiras são
riquíssimas.
Muitos comparavam o papa Bento 16 aos grandes padres do início da
igreja, tamanha a riqueza teológica. Será apreciado ainda mais com o
passar do tempo.
O papa Bento 16 é chamado de conservador, mas inovou ao renunciar pela
primeira vez em mais de 600 anos. O ato abriu uma discussão sobre os
rumos da igreja, como a fala recente de um cardeal escocês a favor do
fim do celibato?
Primeiramente, você vê que esse termo conservador/progressista é
relativo. Muitas vezes, chama-se um papa de conservador e ele faz
inovações extraordinárias.
João 23 (1958-63) era considerado conservador.
João 23 (1958-63) era considerado conservador.
Ele começou a usar aquela
toca que nenhum papa mais usava e estabeleceu o latim para a igreja,
para Roma, num sínodo em que ele realizou.
E, no entanto, foi ele quem convocou o Concílio Vaticano 2º, que maior repercussão teve na vida da igreja.
O papa Bento 16 realmente inovou nesse sentido. Ninguém esperava essa renúncia. Sabíamos que o papa estava fragilizado fisicamente, faltava força, vigor, como ele disse, do ponto de vista físico e também de espírito.
O papa Bento 16 realmente inovou nesse sentido. Ninguém esperava essa renúncia. Sabíamos que o papa estava fragilizado fisicamente, faltava força, vigor, como ele disse, do ponto de vista físico e também de espírito.
Isso todo mundo sentia e via pela televisão, mas não se esperava que
viria a renunciar. Foi um gesto de humildade, porque reconheceu as suas
limitações e não ficou apegado ao poder. Quantos ficam apegados ao poder
mesmo estando doente, que não largam de jeito nenhum, que se acham
insubstituíveis?
Foi também um gesto de coragem, porque ele tem consciência da
repercussão que teria o seu ato. Estamos vendo pelos meios de
comunicação o impacto que a renúncia teve em toda a igreja.
E é um sinal profético. Se nós estamos preocupados com poder, com
carreirismo na igreja, como ele fez aceno em algumas homilias, que é um
dos pecados da igreja, essa busca do poder que cria divisão na igreja,
então ele diz: "Eu renuncio, o cargo não é fundamental pra mim, eu
cumpri a minha missão até quando eu podia cumprir.
O apego ao poder, as
honras, a glória do cargo, entrego a quem conduzir melhor a igreja no
momento de hoje".
Com a consciência tranquila de quem cumpriu seu dever diante de nós. É
um exemplo pra todos. Aqui em Aparecida, o papa nos deu um exemplo de
humildade, de simplicidade, até um pouco tímido.
O sr. mencionou o carreirismo. Esse é o grande motivo da divisão interna?
O papa Bento 16 fez uma alusão a isso. Muitas vezes a pessoa está usando
o seu cargo não para servir. [Mas] muitas vezes, quem sabe, em busca de
benesses, até para se promover mais ainda.
Ele não citou nomes, mas deu a entender que a comunhão é fundamental na
igreja, que é fundamental entender na igreja que todo cargo é serviço,
serviço à igreja, à comunidade, à sociedade.
Cargo na igreja não é honra, não é poder no sentido como entendemos, de
opressão às outras pessoas, ou de ser favorecido pelo cargo. Nesse
sentido, a sua renúncia é um gesto profético.
Em 2007, o sr. disse que havia chegado a hora de a América Latina
evangelizar a Europa. Essa percepção deveria ser levada em conta na
escolha do papa?
Eu digo sempre que o continente não é decisivo, mas a América Latina
está contribuindo hoje para a evangelização da Europa, da África, da
Ásia. É um fato, é verdade.
Quantos brasileiros hoje, padres, membros de novas comunidades e leigos
consagrados estão na Europa no campo da evangelização, da comunicação?
Então a América Latina está contribuindo para a Europa, embora não tanto quanto nós gostaríamos.
Mas isso não quer dizer que seja o critério decisivo para a escolha do papa.
Então quais são esses critérios?
Um perfil que atenda às necessidades de hoje da igreja. Isso se faz num
processo de discernimento, num clima de oração e reflexão, de partilha
de experiências durante o conclave, talvez até antes do conclave, nos
contatos entre os cardeais.
É muito difícil antecipar isso, mas, de um modo geral, é uma pessoa de
experiência pastoral, de diálogo, que promova o diálogo no mundo de hoje
entre os povos, entre as religiões, cristãs e não cristãs, uma pessoa
sensível aos problemas sociais.
E preparado também do ponto de vista
teológico, filosófico, intelectual. É um conjunto de elementos.
Como presidente da CNBB, o que o senhor quer falar ao novo papa?
Os nossos anseios são de uma igreja missionária, dinâmica, uma igreja
capaz de renovar-se para cumprir sua missão, que quer justamente estar
no estado permanente de missão.
Essa missão não é só dos bispos, mas de
todo cristão e de todo batizado.
Uma igreja solidária com os pobres sobretudo, que esteja a serviço do mundo, e não o mundo a serviço da igreja.
Acesso: 25/02/13
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