A internet surge não só como revolução, mas como nova religião com o autoritarismo que lhe é próprio
MARCIA TIBURI
Uma das características fundamentais de nossa época é o triunfo do
que podemos chamar de medialidade sobre o todo da experiência vivida.
Dos circuitos especializados ao senso comum, o que chamam de “mídia”
nada mais é do que a instituição que administra a medialidade,
instituindo o que podemos chamar de império dos meios. Esse império,
contudo, não é apenas político e econômico, mas também religioso. Nesse
caso, não é de espantar que donos de igrejas sejam donos de redes de
televisão.
Mais assustador, no entanto, é que qualquer imagem bem
colocada, com a retórica e o teatro convenientes, tenha o poder de ser o
ídolo como “o caminho, a verdade e a vida” para tantas pessoas. Há uma
afinidade radical entre estes meios: da igreja à publicidade, as vítimas
da medialidade inconsciente são crentes mesmo quando parecem pagãos.
Medialidade, em um sentido muito básico, é a categoria que serve para
explicar nosso convívio com os meios que são o lugar da linguagem:
imagem, palavra ou tudo o que, estando entre nós, permite nossas
relações uns com os outros e com o mundo. Ela inclui a comunicação e
seus meios, considerando que não há comunicação sem meio de comunicação.
Seja a palavra falada, que se articula pelo meio da voz, ou a palavra
escrita, por meio do texto, ambas são “meios” quase naturais, mais do
que apenas “formas” de comunicação. Estando entre nós, meio é, ao mesmo
tempo, forma e conteúdo. É tanto o que se diz quando o como se diz.
Assim, por exemplo, como a expressão de amor que precisa ser dita de
uma forma amorosa para que não surja a contradição entre a forma e o
conteúdo. Não posso dizer “eu te amo” fazendo violência à pessoa que
digo amar.
A pergunta que devemos nos fazer hoje diz respeito ao
estatuto dos meios que organizam nossas vidas. Precisamos compreender os
meios: desde o livro que lemos à televisão que assistimos. Mas não
apenas do ponto de vista do conteúdo. É importante que haja uma
compreensão sobre a forma desse meio. Assim, qual a diferença entre ler
um livro e ver televisão?
A internet como meio
Nosso tempo é o de um elogio radical a um meio bastante novo: a
internet. Afora suas vantagens como meio, ela se parece hoje com a
igreja na qual quem não entra é tratado como ateu, ou seja, como pária
ou herege, alguém que não entendeu “a verdade”. Porque a ideia de
sociedade como lugar ao qual a internet pertence tem perdido lugar na
experiência concreta dos crentes para a ideia de que a sociedade
pertence à internet.
É uma inversão tipicamente religiosa. Tendo
transformado a vida das pessoas a ponto de determiná-las, ela surge não
apenas como uma revolução, mas como a nova religião com o autoritarismo
que lhe é próprio: quem não acredita no mesmo que eu é herege e, como
tal, é o inimigo que deve ser convertido ou eliminado.
A internet
aparece como transcendência total. A própria vida após a morte, no
sentido de uma inversão, pois é na internet que nos tornamos espectros
em cuja vida acreditamos hoje muito mais do que em nossa vida concreta,
corporal, atual e real.
Como meio, a internet é boa para todo mundo. Permite pagar uma conta sem
sair de casa, acelera a comunicação, transmite dados. Como fim, ela é
deturpação da experiência vivida, caminho direto para o céu da
comunicação sem fim e sem fronteira. Verdade é que ela libera os crentes
das dores desse mundo, ou seja, deles mesmos e sua consciência. Permite
realizar desejos no campo virtual que nunca seriam no campo do real.
Usuários despreparados são consumidos por ela no esquecimento do seu
caráter de medialidade. É o mesmo problema que temos com os outros meio
de comunicação: esquecemos que são meios e começamos a experimentá-los
como se fossem fins em si mesmos, mais importantes do que a própria vida
concreta neles recalcada.
Nos comunicamos uns com os outros, vivemos dos meios. A
comunicação resta intocada, bastando-se a si mesma. Nós, os pólos da
comunicação, já não temos valor nenhum.
http://revistacult.uol.com.br/home/2012/08/medialidade-imperio-e-religiao-dos-meios/
Acesso 22/09/12
0 comentários:
Postar um comentário
Gostou do que encontrou aqui?
Comente este artigo que acabou de ler.
E não esqueça de recomendar aos seus amigos.