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Crescimento inquietante

Alavancado por livros, filmes e ensinos que agradam ao público médio, kardecismo tem doutrinas incompatíveis com a fé cristã.



Poucas coisas são tão capazes de trazer conforto a quem perdeu uma pessoa querida do que a possibilidade de encontrá-la novamente numa outra vida. Diversas expressões religiosas, inclusive o cristianismo, 
incluem em sua doutrina a crença veemente na existência da vida após a morte. Mas o espiritismo vai além. Seus praticantes dizem que é possível, aqui e agora, fazer contato direto com seres humanos que já se foram desta vida. Mais ainda – dizem os espíritas que as almas desencarnadas estão em outro plano, prontas e dispostas a auxiliar aqueles que vivem fisicamente em sua caminhada rumo à perfeição espiritual. Para isso, valem-se dos médiuns, pessoas que acreditam ter a capacidade de agir como intermediárias entre vivos e mortos. Afinal, para os espiritualistas, seguidores do conjunto de doutrinas organizado em meados do século 19 pelo pedagogo francês Hippolyte Leon Denizad Rivail, o Allan Kardec, a existência humana é uma sucessão de mortes e renascimentos, sendo que a cada nova vida o indivíduo tem a oportunidade de desenvolver-se.

Começa justamente aí o principal antagonismo 
entre os espiritualistas e os evangélicos, já que estes, com base em textos bíblicos como Hebreus 9.27 – “Ao homem está estabelecido morrer uma única vez, vindo depois disto o juízo de Deus” –, rechaçam peremptoriamente a possibilidade de reencarnação. Além desta, são muitas as divergências da Igreja Evangélica em relação ao espiritismo, como por exemplo quanto ao papel de Cristo. Se para os crentes ele é o Filho de Deus e Salvador do mundo, na opinião dos adeptos do kardecismo Jesus não vai além de um espírito iluminado, um homem que alcançou a perfeição graças ao amor e bondade que dedicou às pessoas. Mas o apelo forte que esse tipo de crença tem, sobretudo numa cultura religiosa sincrética como a brasileira, explica a popularidade do espiritismo em território nacional. O Brasil já é considerado o maior país espírita do mundo, com números que chegariam a 30 milhões de seguidores e simpatizantes. O último levantamento religioso oficial da população nacional, o Censo de 2000, encontrou pouco mais de 2,3 milhões de espiritualistas confessos, mas é sabido que muitas pessoas têm o kardecismo como uma espécie de segunda crença, à qual recorrem em momentos de aflição. Além disso, o espiritismo mesclou-se muito bem com credos de matriz africana como a umbanda e o candomblé, criando uma religiosidade popular que mistura a cosmovisão dos dois lados.
O sucesso estrondoso de Chico Xavier (Downtown/Sony Pictures), cinebiografia do mais celebrado médium brasileiro, que vem batendo recordes de público desde seu lançamento, é demonstração disso. Em dois meses, foram 3 milhões de espectadores, sinal de que a doutrina dos espíritos está em alta. De acordo com a Federação Espírita Brasileira (FEB) há no país cerca de 15 mil centros e casas de sessão das mais diversas linhas espiritualistas. Alguns locais, como o Centro Espírita Perseverança, considerado o maior da América Latina e localizado na capital paulista, recebe diariamente nada menos que 5 mil pessoas. Elas estão interessadas numa religião onde não existem amarras hierárquicas e na qual cada fiel é responsável pelo próprio crescimento espiritual, sobretudo através da prática da caridade, marca registrada do grupo. “Não há intermediação, nem velas ou imagens nos centros espíritas. O praticante precisa se prender a algo que é mais abstrato e pessoal”, explica a socióloga Célia da Graça Arribas. Outra característica do espiritismo é o estímulo ao estudo. “Não é qualquer pessoa que compreende esse sistema, por isso a importância do estudo constante”. Essa opinião é compartilhada pelo criador do Instituto de Cultura Espírita do Brasil (ICEB), Deolindo Amorim, que no prefácio do livro Espiritismo básico, de Pedro Franco Barbosa, afirma: “Não se pode estudar bem o espiritismo sem conhecimento seguro da doutrina”.
Célia investiga o crescimento do kardecismo no país e a formação dos primeiros grupos brasileiros que estudaram a doutrina. De acordo com sua tese de mestrado Afinal, espiritismo é religião? A doutrina espírita na formação da diversidade religiosa brasileira, a crença espírita chegou ao Brasil no início da década de 1860, com a primeira obra de Allan Kardec, O livro dos espíritos, lançado apenas três anos antes. A obra foi a primeira de uma série de cinco trabalhos, que formam a chamada “codificação espírita” (O livro dos médiuns, O Evangelho segundo o espiritismo, O céu e o inferno e A gênese). Todos, segundo a pesquisadora, despertaram grande interesse na elite nacional da época, formada por advogados, médicos, intelectuais, jornalistas e políticos, gente que mantinha muito contato com a produção intelectual da França, então o principal centro cultural do mundo.
Fé elitizada – Essa formação elitizada provavelmente tenha sido a responsável por manter a religião espírita focada principalmente na classe média. O perfil do espírita brasileiro é de pessoas com renda familiar alta, na casa dos R$ 5 mil mensais – bem acima, por exemplo, dos católicos (por volta de R$ 2 mil) e dos evangélicos (não mais que R$ 1,3 mil) –, média de escolaridade de 10 a 15 anos e forte hábito da leitura. A ênfase no estudo explica o desenvolvimento acelerado das editoras do segmento espiritualista em um país como o Brasil, em que somente 10% da população lê com assiduidade. Segundo um levantamento baseado em dados de 2006 da Câmara Brasileira do Livro (CBL), esse nicho de mercado editorial possuía 205 editoras, 4,3 mil títulos, cerca de 1 mil autores e editou nada menos que 6,5 milhões de livros. Isso significou um faturamento de quase R$ 100 milhões naquele ano. De lá para cá, a coisa só cresceu. Basta visitar uma livraria para se testar a popularidade dos temas espíritas. Uma das mais celebradas autoras ligadas ao segmento, Zibia Gasparetto, sempre tem um dos seus livros na lista de mais vendidos.
Mas é Francisco Cândido Xavier, ou simplesmente Chico, que neste ano completaria um século de vida (ele morreu em 2002), o campeão inconteste das letras espíritas. Ele lançou 450 livros supostamente psicografados por espíritos, que venderam mais de 18 
milhões de exemplares. Apenas uma de suas obras, Nosso lar, que teria sido ditada pelo espírito conhecido como André Luiz, é um best-seller que já superou a marca de 1,6 milhão de volumes distribuídos. Não é a toa que o livro ganha ainda este ano uma versão cinematográfica, com previsão de estreia para setembro. A julgar pelo sucesso de Chico Xavier, vem aí um novo campeão de bilheteria.
A popularidade de Chico vem de uma série de fatores. Primeiro, por sua origem humilde: filho de pobres, ele estudou apenas até a antiga quarta série do ensino primário. Por isso, seus escritos são extremamente acessíveis a qualquer um, ao contrário das obras filosóficas de Kardec. Chico lançava livros romanceados, em que os princípios da doutrina espiritualista são apresentadas de maneira bem mastigada. Além disso, seu caráter desprendido – ele doou toda a renda de seus livros a obras de caridade, montou centros assistenciais e vivia de maneira modesta – e sua compleição física frágil ajudaram a moldar em torno de sua figura um ar de santidade, 
venerado abertamente por seus seguidores. O centro que fundou, na cidade de Uberaba (MG), é uma espécie de santuário à sua memória. Diariamente, devotos de vários pontos do país dirigem-se até lá em busca de uma prece, um passe ou simplesmente para rezar diante do busto de Chico. Muitos chegam a atirar cartas endereçadas ao médium falecido por cima do muro de sua casa, transformada em museu. “Ele veio para popularizar o espiritismo. Sua missão na terra foi de exemplificar o amor e decodificar a doutrina”, destaca a vice-presidente da União das Sociedades Espíritas de São Paulo (USE-SP), Júlia Nezu.
Para a mídia, a imagem de Chico Xavier é estratégica. Um personagem real, que nasceu e viveu no país, capaz de reunir pessoas de vários credos e ainda lhes dar esperança, é um alavancador de audiência. Não é a toa que novelas que exploram tema mediúnico são recorrentes na televisão, principalmente na rede Globo. O assunto passou a ser tratado mais diretamente a partir de A viagem (1994). Outros folhetins, como Alma gêmea, exibida entre 2005 e 2006, exploraram abertamente o interesse do público pelo espiritismo. Atualmente em exibição no horário das 18h, Escrito nas estrelas conta a história de um rapaz que morre num acidente de carro e continua se comunicando com os vivos. Para Júlia, o sucesso dos temas espíritas reflete uma busca dos tempos modernos. “As pessoas estão cansadas do materialismo e têm procurado uma resposta transcendental. O espiritismo traz essa resposta, embora não sejamos os donos da verdade”, afirma.
“Estratégia proselitista” – É a caridade, contudo, a bandeira mais levantada pelos seguidores do espiritismo. Fazer o bem ao próximo é fundamental para os devotos, que veem na solidariedade o caminho para a perfeição – crença bem expressa no slogan “Fora da caridade, não há salvação”. “O espiritismo atrai porque mexe com os sentimentos e emoções das pessoas. Afinal, qual a mãe que não gostaria de falar novamente com um filho morto?”, diz o ex-espírita Manoel Castillo. “E há muitas pessoas fazendo o bem nos centros espíritas”, elogia. Ele fala com a experiência de quem foi seguidor ativo do kardecismo durante mais de uma década, junto com a mulher, Graça. Evangélicos, eles hoje frequentam a Igreja Cristo é Vida, na Vila Formosa, em São Paulo. “Acontece que as pessoas são enganadas. A história que se conta por lá é muito bonita, mas a verdade é que os chamados ‘espiritos do bem’ são demônios”.
O testemunho do casal é semelhante ao de tantas pessoas que fizeram este tipo de migração religiosa. O envolvimento inicial com a fé espírita começou com uma alegada mediunidade. Graça conta que chegou a ter contato com o que considerava espíritos de luz e até previu a morte da filha adotiva, mesmo quando a menina não tinha nenhum sintoma de enfermidade. Fundador do Ministério Rhema e autor do livro Espiritismo – Conhecendo os cultos afro, o pastor Milton Vieira da Silva diz que o principal problema da doutrina espírita é a redução do papel de Jesus, que descaracteriza o conjunto de crenças espiritualistas como cristãs. “Eles veem Cristo como um dos melhores profetas, um mestre iluminado por excelência e o melhor homem que já existiu – menos como Senhor e Salvador da alma humana.”
O jornalista e missionário Jamierson Oliveira, ligado à Igreja Batista Betel, considera que as obras sociais e assistenciais são uma vitrine de justiça e o cartão de visita não só do espiritismo, mas de outros grupos religiosos. “É uma estratégia de proselitismo, mas é preciso registrar que também os evangélicos e protestantes realizam grandes obras em favor do próximo”. Ele cita como exemplo igrejas e organizações não-governamentais de caráter cristão, como Exército de Salvação, Visão Mundial e Compassion. Editor da Bíblia Apologética de Estudos, voltada à defesa da fé, e de diversos artigos e trabalhos na área de seitas e heresias, Jamierson concorda que o preparo teológico é fundamental para rechaçar os ensinos do espiritismo. “Como Igreja de Cristo, não temos que nos intimidar pela militância das seitas, mas nos despertarmos por alguns bons exemplo delas”, destaca. “Afinal de contas, fomos chamados para salgar a terra, além de iluminar o mundo. João disse que se amamos a Deus, a quem não vemos, devemos revelar isso em ação em favor do nosso próximo, que vemos e convivemos.”
Pesquisador de religiões e seitas há mais de 50 anos, o pastor Natanael Rinaldi, palestrante do Instituto de Estudos Cristãos (ICP), começou a estudar o espiritismo de Allan Kardec na mesma ocasião em que passou a se dedicar à apologética. Foi nesse percurso que avaliou não somente a doutrina espírita, mas também sua origem. Para ele, o caráter abrangente do espiritismo é apenas uma maneira sutil de se envolver nos meios religiosos com a finalidade de ter mais fácil aceitação, como se fosse também uma religião cristã. “O que não é verdade”, afirma o apologista. “Qualquer movimento religioso que alegue ser cristão deve ter seus ensinos confrontados com a Palavra de Deus para se verificar a veracidade dos mesmos”, sentencia. “Já os autores kardecistas dizem que sua base é o ensino dos espíritos. O espírita é um tipo de religioso eclético”. Mesmo assim, ele acha que alguns grupos religiosos são mais suscetíveis à doutrinação espírita. “Os católicos que simplesmente adotam a religião dos pais, mas desconhecem totalmente seus dogmas básicos, são presas fáceis”.
Rinaldi alerta que também muitos evangélicos estão na mesma situação: “Há crentes que ignoram as doutrinas bíblicas centrais. Não leem as Escrituras, não participam de estudos bíblicos, não têm como responder acerca da razão de sua fé”. Quanto às sessões mediúnicas, em que os adeptos acreditam ter contato com pessoas que já morreram, o pastor lembra que o apóstolo Paulo advertiu a igreja de Corinto sobre a possibilidade de o próprio diabo e seus anjos transfigurarem-se em anjos de luz: “Não são as pessoas falecidas que se manifestam, mas sim, espíritos mentirosos que tomam seus lugares nas invocações. E o pai da mentira é o diabo.
Fonte: Revista cristianismo hoje www.cristianismohoje.com.br











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