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As indulgências, a Reforma Protestante e o significado do evangelho

Muitos protestantes atuais ficam surpresos em saber que ainda hoje, em pleno século 21, as indulgências continuam a ser uma crença abraçada oficialmente pela Igreja Católica Romana. Esse dogma e suas implicações práticas desencadearam a Reforma Protestante do século 16. A maneira como isso se deu é uma história fantástica, quase inacreditável, mas que realmente aconteceu.

Uma eleição imperial
No final da Idade Média, os imperadores alemães eram eleitos por um pequeno colégio eleitoral composto de sete integrantes: três arcebispos (de Mainz, Trier e Colônia) e quatro nobres (o conde palatino do Reno, o duque da Saxônia Eleitoral, o margrave de Brandemburgo e o rei da Boêmia). Esse sistema havia sido estabelecido por um decreto datado de 1356. No início do século 16, ao se realizar uma dessas eleições, uma das famílias nobres participantes do colégio eleitoral (os Hohenzollern) teve a ideia de se apossar de um dos arcebispados, o de Mainz ou Mogúncia, que estava vago. O escolhido para tal cargo foi Alberto de Brandemburgo, irmão do referido margrave. Todavia, ele não tinha a idade mínima necessária para isso e assim foi necessário obter uma autorização especial do papa.

Essa autorização custou elevada soma, pois Leão X precisava de recursos para construir a Catedral de São Pedro. O dinheiro foi obtido mediante empréstimo dos banqueiros Fugger, de Augsburg, a uma exorbitante taxa de juros. Para pagar o empréstimo, o novo arcebispo Alberto recebeu do papa o direito de vender indulgências, sendo que metade dos lucros iria financiar a construção da catedral romana. O arcebispo confiou a tarefa ao melhor vendedor que pôde encontrar -- o dominicano João Tetzel. Um de seus “jingles” promocionais dizia: “Logo que a moeda na caixa ecoa, uma alma do purgatório para o céu voa”. Tetzel cumpriu sua missão de modo eficiente e dramático, impressionando vivamente os seus ouvintes e convencendo-os a adquirir tão valioso bem. Quando ele se aproximou da cidade de Wittemberg, Lutero ficou indignado com esse comércio do perdão de Deus e escreveu suas famosas “Noventa e Cinco Teses” (31/10/1517). Estava iniciada a Reforma Protestante.

Origens de um dogma
As indulgências são consequência de um antigo problema com que se defrontou a Igreja Católica -- o que os cristãos, aqueles que renasceram através do batismo, deviam fazer em relação aos seus pecados. Para lidar com essa questão pastoral, foi articulado ao longo dos séculos o sacramento da penitência. O pecador devia mostrar-se arrependido dos seus pecados (contrição), em seguida informá-los ao sacerdote (confissão) e então receber a declaração do perdão divino (absolvição). Ao mesmo tempo devia fazer obras de satisfação (penitências), demonstrando de modo visível e concreto o seu arrependimento. Todavia, a igreja começou a fazer uma distinção entre as penas eternas e as penas temporais referentes ao pecado. A absolvição perdoava a culpa e livrava da penalidade eterna, mas as penalidades temporais permaneciam. Se não fossem pagas na terra, teriam de sê-lo no purgatório.

Indulgência, palavra que significa “tolerância”, “benevolência”, é o meio através do qual a igreja concede a remissão total ou parcial do castigo temporal devido ao pecado já perdoado. Como aconteceu com outras questões, as indulgências fizeram parte da prática católica antes de serem definidas formalmente como um dogma da igreja. Por exemplo, elas foram muito utilizadas na época das Cruzadas. Além disso, foram objeto de séria reflexão teológica por parte dos escolásticos, como Tomás de Aquino.

Finalmente, a teoria sobre a qual elas se apoiam foi definida formalmente pelo papa Clemente VI na bula “Unigenitus”, em 1343. Segundo esse documento, existe um tesouro incalculável constituído pelos méritos de Cristo, de Maria e dos santos. Esse tesouro foi confiado à igreja e colocado debaixo da autoridade do papa. Este, e os bispos autorizados por ele, podem aplicar tais méritos, através das indulgências, em benefício dos fiéis, vivos e mortos.

O questionamento protestante
Em suas teses, Lutero se manifestou contra a comercialização das indulgências. Disse ele: “Bem-aventurado é aquele que luta contra a dissoluta e desordenada pregação dos vendedores de perdões” (tese 72). Embora tecnicamente elas não pudessem ser vendidas, visto serem uma dádiva graciosa da igreja aos cristãos, esperava-se que estes ofertassem em troca uma “contribuição” para a construção da catedral. Esse termo é usado muitas vezes nas instruções dadas pelo arcebispo Alberto de Mogúncia. Havia até mesmo uma tabela variável de preços segundo a qual cada um iria contribuir de modo proporcional às suas posses. O fato é que, ao longo dos séculos, com frequência líderes eclesiásticos ambiciosos usaram esse recurso para resolver seus problemas financeiros.

Indo além, Lutero questionou também a doutrina da salvação que estava associada às indulgências. A certa altura ele afirmou: “Aqueles que se julgam seguros da salvação em razão de suas cartas de perdão serão condenados para sempre juntamente com seus mestres” (32). Um pouco adiante, acrescentou: “Qualquer cristão que está verdadeiramente contrito tem remissão plenária tanto da pena como da culpa, que são suas dívidas, mesmo sem uma carta de perdão. Qualquer cristão verdadeiro, vivo ou morto, participa de todos os benefícios de Cristo e da igreja, que são dons de Deus, mesmo sem cartas de perdão” (36-37). Divergindo da ideia tradicional de um tesouro de méritos, ele afirmou: “O verdadeiro tesouro da igreja é o sacrossanto evangelho da glória e da graça de Deus” (62). Em suma, as indulgências eram desnecessárias, porque tudo o que elas pretendiam comunicar já era oferecido gratuitamente por Deus por meio da obra redentora de seu Filho.

“Sola Scriptura”
O fulcro do posicionamento protestante foi o seu princípio basilar da prioridade absoluta das Escrituras em matéria de fé e prática. Partindo do pressuposto de que o Antigo e o Novo Testamento, interpretados segundo critérios saudáveis e equilibrados, contêm a vontade revelada de Deus para a igreja e para os cristãos, os protestantes se viram compelidos a rejeitar toda e qualquer crença que não pudesse ser claramente fundamentada na Palavra de Deus. Isso incluía o purgatório, as indulgências, o tesouro de méritos e muitos outros pontos. À luz do Novo Testamento, eles concluíram que Jesus Cristo e seus apóstolos nunca transmitiram esses ensinos -- eles não faziam parte do “evangelho”, do “kérigma” ou proclamação da igreja primitiva. Os primeiros cristãos não abraçavam tais convicções.

Os partidários da Reforma acabaram chegando a um entendimento da salvação e da vida cristã muito diverso daquele até então predominante. Naquela época, a salvação era vista como um processo que durava a vida inteira (e mesmo além, no purgatório). A vida cristã era entendida como uma peregrinação rumo à salvação, à qual muitos só chegavam no momento da morte. Partindo do conceito de “justificação pela graça mediante a fé somente”, esse processo foi invertido. Justificado pela fé, o crente vive toda a sua vida como um salvo, e não como alguém em busca de salvação. A salvação não está no fim, mas no começo da vida cristã. O que ocorre ao longo da vida é um processo, que pode ser bastante árduo, em busca da santificação.

Conclusão
A moderna Igreja Católica continua a crer nas indulgências e a ensiná-las por meio do seu magistério. Eventos como os “anos santos” e as eleições papais estão associados a indulgências especiais. Existem diversos outros meios pelos quais os católicos podem obter esse benefício da igreja. O aspecto pecuniário que deu má fama a essa prática parece que há muito foi afastado. O que os católicos precisam considerar é se tal preceito é não só um ensino da igreja, mas um ensino de Cristo e seus primeiros seguidores. Lutero achava que a igreja somente tinha o direito de cancelar as sanções impostas aos fiéis por ela mesma (penas canônicas), e não quaisquer penalidades impostas por Deus. Destas existe libertação total por meio da fé em Jesus Cristo: “Se confessarmos os nossos pecados, ele é fiel e justo para nos perdoar os pecados e nos purificar de toda injustiça” (1Jo 1.9).

Alderi Souza de Matos é doutor em história da igreja pela Universidade de Boston e historiador oficial da Igreja Presbiteriana do Brasil. É autor de A Caminhada Cristã na História e “Os Pioneiros Presbiterianos do Brasil”
Fonte: Revista Ultimato
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