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Capa da revista cristianismo Hoje |
Convertido ao Evangelho em 1980, o advogado carioca Hélio Vagner
Zagaglia, hoje com 58 anos, foi membro de algumas igrejas evangélicas na
maior parte desse período – e membro daqueles atuantes, de frequentar
cultos quatro vezes por semana e participar de diversas atividades na
esfera eclesiástica. Ao longo dessa caminhada, contudo, alguma coisa
mudou em sua mente e no coração. “Depois de 30 anos naquela rotina,
confesso que não tinha mais paciência com tudo relacionado ao ambiente
religioso”, lembra. A decisão de sair da igreja não foi tão difícil, uma
vez que surgiu a partir de convicções pessoais. “Na verdade, a escolha
de não mais frequentar uma igreja, que tomei há uns dez anos, ocorreu
após uma ampliação da compreensão do termo congregar. Pela simples
leitura do Evangelho, entendi que isso, para Jesus, não é apenas ir à
igreja”. Na opinião do advogado, qualquer lugar – “Seja o bar da
esquina, o prédio do Fórum em que trabalho ou a praia onde surfo” – é
propício à comunhão com Deus e junto àqueles que partilham da mesma fé.
“O próprio Senhor afirmou que estaria presente quando dois ou três se
reunissem em seu nome”, cita.
Quanto às advertências que ouviu, na época, ele se sente tranquilo.
“Essa história de que brasa fora do braseiro se apaga e que eu ficaria
sem cobertura espiritual longe da igreja perdem sentido, diante da
consciência de quem eu sou e de quem Jesus é para mim”, afirma Zagaglia.
Ele faz questão de dizer que não tem nada contra a postura daqueles que
acham fundamental congregar em uma igreja, no sentido convencional do
termo; apenas, não sente mais necessidade disso. “Observo todas as
práticas ditas como disciplinas espirituais muito mais agora do que
antes – e creio que a razão disso não está em pertencer a uma igreja ou
não, mas sim, em uma mudança de entendimento acerca dos significados de
tais práticas pela leitura do Evangelho, que faço, por puro prazer,
todos os dias.”
O advogado Hélio é parte de um contingente de, pelo menos, 9,2
milhões de evangélicos brasileiros que não mantêm mais vínculos com
nenhuma igreja. Os números, aferidos pelo Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE) referem-se ao Censo 2010 e está
desatualizados –ainda assim, já representam quase 20% do total de
evangélicos do país. A particularidade que chama a atenção dos
estudiosos e líderes, além do gigantismo da cifra, é a mudança de
perspectiva. Antes, o crente que saía da igreja era o chamado
“desviado”, visto como alguém que cedera aos apelos do mundo, quase um
apóstata. Agora, não: há cada vez mais pessoas que, como Zagaglia, não
querem mais fazer parte dos róis de membros das organizações
eclesiásticas porque não acham mais necessário, mas garantem continuar
crendo na Bíblia e observando as condutas consideradas adequadas a um
cristão. É gente que, simplesmente, não tem mais interesse em congregar –
a creem que estão muito bem assim.
“Apesar de eu não participar mais das atividades religiosas, nem
concordar com maioria das doutrinas da igreja, não me considero afastado
da minha relação com o divino. Não perdi minha fé”, afirma o designer
industrial David Oliveira Silveira Junior, de 32 anos. Ele deixou para
trás 25 anos de vivência na igreja onde fora nascido e criado e se
pergunta por que precisaria continuar ali, observando liturgias e
comportamentos que “não faziam mais sentido”. David explica que esse
processo nunca foi premeditado. “Sendo filho de um pastor, eu só me
percebi à vontade para sair quando senti que essa saída era justamente a
vontade de Deus, por mais contraditório que isso parecesse.”
Ele e muita gente não veem qualquer contradição entre jogar para
escanteio uma das práticas basilares da fé reformada – a inclusão no
corpo de Cristo através de sua expressão mais visível na terra, que é a
Igreja – e seguir o caminho do Evangelho de forma independente. “Hoje,
sinto-me mais próximo e conectado com a natureza da minha
espiritualidade. Muito menos santo, muito mais humano”, completa. “Parte
dos evangélicos têm adotado o
Believing without belonging
(“Crer sem pertencer”), expressão cunhada pela socióloga britânica Grace
Davie sobre o esvaziamento das igrejas ao mesmo tempo em que se mantêm
as crenças religiosas na Europa Ocidental”, destaca o doutor em
Sociologia Ricardo Mariano, da Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul. Para ele, o aumento do número de protestantes e
pentecostais que se dizem sem vínculo institucional é resultado tanto do
individualismo como da “busca por autonomia diante de igrejas que
defendem valores extemporâneos e exigem elevados custos de seus
filiados.”
“IGREJA CANSA”
Os motivos podem ser os mais variados (problemas de relacionamento,
desgaste com modelos eclesiásticos engessados e líderes autoritários,
cansaço com o chamado ativismo religioso etc). Há, também, demandas mais
sutis. “Noto que o comportamento dos cristãos, em particular o dos
evangélicos, tem mudado bastante a esse respeito”, diz o psicólogo
Antônio Carlos Volpi, que atende como voluntário na Associação Batista
Beneficente e Missionária do Ceará. A prioridade, ali, são os
atendimentos voltados à ação social, mas ele conta que também conversa
com muitos crentes que lhe contam porque desistiram de frequentar
igrejas. “Quase todos falam de um esgotamento de expectativas, um ‘fim
de linha’ sem um motivo específico. Quando desenvolvemos o diálogo,
percebemos que são pessoas que não têm mais objetivos na vida cristã
comunitária – e, diante das novas abordagens mais individualistas da fé,
não se constrangem em seguir esse caminho espiritual independente”.
Desse modo, continua Volpi, a figura de um pastor, ou líder, perde sua
importância. “Eles dizem que podem buscar a Deus sem intermediários ou
aparatos litúrgicos. É difícil refutar um argumento desses”, reconhece.
Mas, se o termo “igreja” deriva do grego ekklesia, que pode ser
traduzido como “ajuntamento de pessoas”, “assembleia” ou, ainda,
“chamados para fora”, fica difícil concordar com aqueles que defendem
que a verdadeira Igreja de Cristo está dentro de cada um de nós, como
diz a gerente de vendas Ágatha Nascimento. Ela é uma das várias pessoas
ouvidas pela reportagem acerca da necessidade, ou não, de o cristão
fazer parte de uma igreja. Depois de se converter na Igreja do Nazareno
do Castelão, em Fortaleza (CE), há 12 anos, ela passou por outras
denominações. Agora, segue o Evangelho sem carteirinha de membro, mas
com o que declara uma fé “inabalável” em Jesus. “Posso fechar a porta do
meu quarto e falar direto com o Pai”, argumenta, citando uma célebre
passagem bíblica onde Jesus destaca o poder da oração. “Posso cantar
louvores e meditar na Palavra em casa, com minha família. Sinceramente,
não me sinto obrigada por Deus a fazer parte de uma congregação.
Sinceramente, tenho uma fé mais forte do que muita gente que está lá.”
Em que pese a declaração
Extra ecclesiam nulla salus (“Fora da
Igreja, não há salvação”), de Cipriano de Cartago, por volta do ano 250
da Era Cristã, as reuniões em templos só começaram a surgir a partir da
conversão do imperador romano Constantino, no século 4, quase 300 anos
depois que o Cristianismo surgiu. Até então, era nas casas, no campo e
até nas catacumbas que os seguidores de Jesus se reuniam em seu nome –
isso, quando podiam se encontrar, tal era a perseguição que sofriam. No
mais das vezes, a fé era vivida e praticada individualmente ou, no
máximo, no seio familiar. E, se a verdadeira adoração – aquela, “em
espírito e em verdade” – pode ser feita em qualquer lugar, conforme
afirmou o Filho de Deus, a experiência transcendental da fé prescinde do
ajuntamento de fiéis. Isso, contudo, não anula a essencialidade da
igreja, muito pelo contrário, no entender do pastor, missionário e
escritor Sandro Baggio. Ele é um dos coordenadores do Projeto 242, uma
igreja de perfil informal e alternativo em São Paulo, com marcada
vocação para as manifestações artísticas e a atuação comunitária. “Esse
cansaço com a igreja é verdadeiro. A igreja, muitas vezes, cansa,
mesmo!”, admite.
Para ele, o excesso de programações, cultos, treinamentos e atividades,
além da expectativa de que todos estejam engajados em tudo, o tempo
todo, como demonstração de seu compromisso com a visão da igreja e seu
vigor espiritual, cedo ou tarde leva ao esgotamento espiritual. “O que
mudou foi que muitos, uma vez cansados com sua experiência de
pertencimento a uma igreja local, passaram a interpretar que a fé cristã
pode ser vivida solo. Isso é um tremendo equivoco, quando comparado ao
ensino bíblico. Não há, em local algum das Escrituras, um projeto de
espiritualidade que não esteja engajado com uma comunidade de fé. O
cristão sem igreja é fruto do individualismo da cultura ocidental.”
Em suas apurações e entrevistas para elaboração do livro
Feridos em nome de Deus
(Editora Mundo Cristão), a jornalista Marília de Camargo Cesar
encontrou gente que abandonou os bancos da igreja depois de serem
exploradas, manipuladas e desrespeitadas por líderes inescrupulosos ou
teologias equivocadas. “Porém”, avalia, “muitos que não sofreram com
tais experiências saem porque acreditam poder cultivar uma comunhão
individual com Cristo, sem necessidade de participar de cultos e
celebrações formais”. Marília, que é evangélica, reconhece que pode
parecer muito confortável buscar a Deus na solitude. “Ali, somos só nós e
Deus, sem conflitos indesejáveis com terceiros.”
Mas, são justamente esses conflitos e a necessidade de se
compartilhar realidades distintas e dividir os fardos, orando e lutando
uns pela fé dos outros, que leva o crente ao que Paulo chamou de
“desenvolvimento” da salvação, ela diz. “Muitos dos que saem das igrejas
passam a se reunir em pequenos grupos, onde a Palavra é ensinada e uns
oram pelos outros. É uma alternativa bastante saudável e, eu diria,
quase a mesma coisa que frequentar uma igreja”. A autora, porém, entende
que participar de uma igreja ou pequeno grupo é essencial para a
caminhada do cristão. “É somente nesse ambiente de contato com pessoas
diferentes que nós podemos ser lapidados, amadurecer e crescer no
conhecimento da Palavra do Senhor.”
RELAÇÃO FRÁGIL
O cientista social Ricardo Bitun, professor da Universidade
Presbiteriana Mackenzie, de São Paulo, lembra que no protestantismo,
historicamente, o pertencimento a uma igreja sempre foi algo básico e
muito valorizado. A confissão denominacional fazia parte da consciência
cristã do indivíduo, estando ligada à sua identidade espiritual. “O
caminho do exercício de uma fé solitária, ou a busca por um algo novo
espiritual que o indivíduo não encontra mais na igreja, é tentador e
encontra eco em nossa cultura moderna”, opina Bitun, que também é pastor
da Igreja Evangélica Manaim, em São Paulo. Porém, esse novo jeito de
ser Igreja, não necessariamente através de vínculos de pertencimento,
envolve certos perigos, conforme alerta. “Se pensarmos na igreja apenas
como o local físico onde nos reunimos, cantamos, temos relacionamentos
pessoais e ouvimos pregações, domingo a domingo, mais cedo ou mais tarde
nos decepcionaremos com sua rotina”.
“A Igreja, embora não nos salve, é capaz de nos proporcionar os meios
da graça. Quem se agrega ao noivo, que é Cristo, não pode deixar de
achegar-se à sua noiva, a Igreja”, defende o pastor e escritor
Claudionor de Andrade, consultor teológico da Casa Publicadora das
Assembleias de Deus. No Credo dos Apóstolos, ressalta, há um trecho que
chama a atenção de todos quantos o leem: “Creio na comunhão dos santos”.
Claudionor destaca, ainda, a passagem de Atos 2, segundo a qual os
primeiros cristãos estavam sempre juntos e perseveravam, unânimes, no
templo, e um dos textos mais citados quando se questiona o valor da
igreja: “Não deixemos de congregar-nos, como é costume de alguns; antes,
façamos admoestações, e tanto mais quanto vedes que o dia se aproxima”
(Hebreus 10.25).
“Não creio, sinceramente, que os crentes que escolhem sair da igreja
estão abandonando o Senhor”, reconhece o presbítero André Luis Garcia
Sanchez. “O que percebo é que o tempo e a solidão promovem certo
esfriamento da fé, das práticas espirituais, do serviço ao Senhor e ao
próximo. Essas brechas fazem com que muitos que tentam viver uma fé
longe do corpo de Cristo sofram e até abandonem o Evangelho, em algum
momento”. Autor do blog Esboçando ideias e de estudos bíblicos que
veicula pela internet, além de professor da Escola Bíblica Dominical em
sua congregação, a Igreja Presbiteriana Bela Jerusalém, em Ribeirão
Preto (SP), Sanchez tem contato com muitas pessoas – inclusive, aquelas
que tentam substituir a comunhão na igreja por assistir cultos online,
fazer ação social ou manter contatos eventuais com outros crentes, em
ambientes extraeclesiásticos. “Nossa experiência tem mostrado certa
fragilidade nesse tipo de ação.”
Em seu livro
Gente cansada de igreja (Hagnos), o doutor em
História e pastor batista Israel Belo de Azevedo aborda a falta de
compromisso, um dos traços da pós-modernidade, como um dos motivos que
leva o cristão a deixar sua igreja. “Isso tem a ver com a crise de
modelos que vivemos. Uma das marcas do nosso tempo, afinal de contas, é a
ausência de compromisso”. Desde 1999, ele pastoreia a Igreja Batista
Itacuruçá, uma congregação de classe média no bairro da Tijuca, no Rio
de Janeiro. Vez por outra, é procurado por alguém que demonstra o
interesse em sair da comunidade. “Ouço justificativas as mais diversas,
desde a busca por novas experiências pessoais, expectativas não
atendidas e até dificuldade de adequação a determinadas categorias, além
de certo desânimo”, enumera. “Penso que cabe a cada um fazer sua
própria avaliação e nem sempre colocar a responsabilidade pelo
afastamento nos outros”. Israel Belo enfatiza que a Igreja, mesmo essa
que temos visto no século 21, é o meio que Deus escolheu para fazer
conhecidas sua multiforme sabedoria e sua vontade ao mundo. “Ela tem uma
tarefa, e é preciso que fique atenta ao exercício dessa tarefa. Somente
assim, a Igreja vai manter sua razão de ser perante os que estão fora –
e, também, para os que estão dentro dela.”
“Eu já fui uma dessas pessoas cansadas de ir à igreja”, testemunha o
técnico em mecânica automotiva Joberson Lopes, de 38 anos. Criado na
Assembleia de Deus em Brasília, ele começou a se perguntar, por volta
dos vinte anos de idade, se valia à pena continuar ali. A imagem pregada
lá, de um Deus mau e dominador, além de uma série de “baboseiras
religiosas”, como o rigor excessivo em usos e costumes, tirou seu foco.
“Preferi ficar em casa ate achar um lugar coerente com minhas
convicções”. O tempo e o amadurecimento se encarregaram de mudar sua
ótica. “Por eu ter passado por esse caminho, posso dizer que precisamos
entender o que é ser Igreja e perceber as diferenças entre ela e a
institucionalização religiosa.”
Hoje vivendo na Califórnia (EUA), ele trabalha junto a adolescentes
mexicanos pela agência Jovens com Uma Missão (Jocum), depois de ter
passado por várias cidades brasileiras e feito missões até na Tanzânia.
Joberson, a mulher e os dois filhos frequentam agora a Free Evangelical
Church, na cidade de Hamilton. “Muitas pessoas deixam de ir à igreja com
motivos coerentes, mas optam pela solução errada”, pontua. “Prezo
liberdade e admiro o livre arbítrio, e creio que há pessoas que podem
ter plena fé e comunhão com o Senhor sem a necessidade de participar,
toda semana, de cultos na igreja. Eu já vivi um tempo assim. O perigo
disso é quando somos enganados por nós mesmos, sem percebermos que não
conseguimos, sozinhos, manter a disciplina de procurar o Jesus que
amamos. Assim, vamos nos afastando, lentamente, de uma comunhão saudável
e proveitosa com Deus.
Entrevista com Faustino Teixeira
Para o doutor em Teologia e professor no Programa de Pós-Graduação em
Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG)
Faustino Teixeira, a contestação aos modelos convencionais de Igreja é
um fenômeno global. Para ele, a multiplicação e diversificação das
instituições acarreta, em última análise, mudanças perceptíveis na noção
de pertença religiosa – inclusive, a decisão do fiel de não permanecer
ligado a uma igreja. “É possível, e viável, que uma vida espiritual
madura e autêntica possa ser vivida igualmente em caminhos
alternativos”, aponta. O intelectual conversou com CRISTIANISMO HOJE:
CRISTIANISMO HOJE – Na sua opinião, quais os motivos pelos
quais tantos evangélicos, atualmente, se afastam da Igreja, optando por
viver a própria fé de maneira individual?
FAUSTINO TEIXEIRA – Esta questão da crise das
instituições religiosas não é um traço particular brasileiro. O que se
verifica é algo singular: uma multiplicação e diversificação das
instituições portadoras de sentido e, ao mesmo tempo, uma menor
fidelidade a elas. São mudanças bem perceptíveis no campo das filiações
tradicionais. De fato, há um cansaço crescente com respeito às
instituições tradicionais, uma certa “desafeição” com respeito aos
caminhos mais oficiais. Os “evangélicos não determinados” já representam
hoje, no Brasil, um percentual de 21,8% do contingente evangélico, algo
em torno de 5% de toda a população brasileira. São evangélicos que não
se enquadram nos canais tradicionais, sendo chamados por alguns de
“evangélicos genéricos”, ou “evangélicos sem igreja”. É algo que indica
uma diversificação na própria pertença evangélica.
A recente e crescente contestação aos chamados modelos
convencionais de igreja tem adquirido contornos de pós-modernidade, mas
pode-se dizer que é fenômeno essencialmente contemporâneo?
As religiões continuam marcando sua presença, não tenho dúvida sobre
isso, mas agora de forma distinta, com metamorfoses bem evidentes. E, ao
lado das religiões, vemos o crescimento de espiritualidades laicais,
que não se encaixam no tradicional perfil religioso. A sede de
espiritualidade é, talvez, um dos fenômenos mais característicos de
nosso tempo. Ela traduz uma resistência viva aos caminhos da
modernidade, pontuada pelo anonimato, pela aceleração impressionante,
acompanhada de individualização e burocratização. O avanço da
modernidade não produziu um recuo da religião, mas uma outra forma de
exercício da dinâmica religiosa. As religiões permanecem, bem como as
espiritualidades – em estado crescente –, transformando-se sob o impacto
da individualização e da globalização. Como lembrou o historiador
francês Frédéric Lenoir, a busca pelas respostas a um mundo de
incertezas permaece acesa, mas não mais como no passado, “no seio de uma
tradição imutável ou mediante um dispositivo institucional normativo”.
Os cristãos que, simplesmente, optaram por seguir sua
caminhada de fé longe da igreja se perguntam para quê precisam dela. A
seu ver, ela não é mais necessária nesse contexto atual?
No meu modo de ver, a saída essencial está na busca de uma nova
espiritualidade, que saiba conjugar com sabedoria o humus profético e a
vida espiritual. Não creio, sinceramente, que o único caminho seja o da
vinculação institucional. É possível, e viável, que uma vida espiritual
madura e autêntica possa ser vivida igualmente em caminhos alternativos.
A vida espiritual é essencial, e que possa ser vivida de maneira cada
vez mais holística, integrando o ser humano nessa linda cadeia da vida,
em todas as suas formas. Mais importante que a declaração de crença ou
ou exercício de exclusividade na pertença religiosa é a disposição
dialogal e a capacidade de acolhida do mundo da alteridade.
Crer sem pertencer
São muitos os motivos alegados por aqueles que já não veem na igreja
nenhuma essencialidade à sua vida espiritual. Por outro lado, quem não
abre mão da frequência regular aos cultos e atividades eclesiásticas faz
questão de ressaltar a importância disso para a saúde da fé.
CRISTIANISMO HOJE conversou com algumas pessoas sobre o assunto:
“Um dos motivos pelos quais optei pela caminhada cristã fora da
igreja foi o alto custo financeiro imposto aos membros das comunidades
cristãs. A liderança, neste quesito, não admite discutir o assunto. As
regras mudaram: ao invés da fé genuína, o que se exige é uma filiação
quase clubista. A instituição não pode tomar o lugar da Igreja, corpo
místico de Cristo, nem sufocá-la. Hoje, fora da igreja, posso dizer que
vivo minha fé de forma tão intensa quanto na época em que congregava.
Minha vida espiritual ficou menos mística e mais racional, mas
igualmente verdadeira e sincera”
Edina Cabral, 56 anos, comerciante, que durante mais de 25 anos foi membro de uma igreja evangélica do Rio de Janeiro
“Não entendo como um crente em Jesus pode escolher o caminho
solitário, longe da comunhão dos santos. É claro que as igrejas têm
problemas, mas as pessoas que alegam isso não se afastam de suas
famílias ou locais de trabalho – os quais, certamente, também têm muitos
problemas. Para mim, quem age assim não quer admitir que precisa voltar
à prática do primeiro amor, que sempre acontece dentro de uma igreja”
Ricardo Augusto Morais, 28 anos, técnico em informática em membro da Igreja Metodista Wesleyana
“A instituição religiosa não é a Igreja, nem ao menos a representa. O
corpo de Cristo se compreende não pelo conjunto, mas pelo que está
entre cada indivíduo. Exerci o cargo de pastor batista durante 16 anos.
Hoje, vivo a ideia de servir ao Salvador e me conecto a ele pela
semeadura do Evangelho durante a caminhada da vida, com os pés no chão e
longe das manifestações humanas centralizadas ou descentralizadas.
Mantenho comunhão com irmãos que também são Igreja, pois faço separação
entre esta e a instituição. Sigo a simplicidade do mesmo caminho que foi
sugerido por Cristo, na via de Emaús”
João Ruth, 48 anos, é jornalista, apresentador de TV e mora em Cotia (SP)
“Respeito a experiência com Cristo de cada um, já que a conversão é
um fenômeno que deve ser vivido individualmente. Posso falar por mim –
e, na minha opinião, é impossível viver uma vida cristã, em sua
plenitude, longe da igreja e dos irmãos na fé. Conheço muitas pessoas
que entraram por esse caminho e depois voltaram machucadas ou com a fé
muito abalada. Sinceramente, não aconselho isso a ninguém. Se nenhuma
igreja nos serve, o problema está em nós mesmos”
Washington Luiz C. Junior tem 32 anos e é membro da Igreja Apostólica Renascer em Cristo, em São Paulo, desde a adolescência
“Quando a pessoa começa a se sentir autossuficiente em sua fé, passa a
criticar tudo. A igreja e os seus membros já não servem mais, pois se
sentem em um ‘outro patamar’ espiritual. A igreja tem seus problemas,
mas é através dela que chegamos ao conhecimento do Evangelho. Ela nos
fortalece na fé e nos estimula a seguir nos caminhos de Deus”
Maria Luiza Freitas Xavier, professora, crente da Assembleia de Deus em Porto Alegre (RS)
“Eu nunca saí da igreja, mas passei por longo período de crise dentro
dela. Precisei encontrar um novo jeito de viver a igreja. Além disso,
entendi que as piores coisas do mundo, assim como as melhores, podem ser
encontradas nela. Só que eu também descobri que as coisas mais belas do
ponto de vista existencial – mudanças radicais de vida, para melhor –
acontecem com maior intensidade na igreja. Por isso, ela recuperou, na
minha cabeça, seu lugar de agência de transformação no mundo”
Marson Guedes é psicólogo e membro da Igreja Batista da Água Branca, em São Paulo
“Sou cristã e não preciso ir à igreja para continuar seguindo a
Cristo. Antes, não pensava assim; só que, a certa altura, tudo aquilo – a
estrutura toda, as cobranças financeiras, a pressão por um envolvimento
que eu já não queria mais – perdeu o sentido. Quando parei de
frequentar os cultos, muitos dos chamados irmãos da fé, que eu tinha
como amigos, cortaram relações comigo, como se eu pudesse lhes
transmitir algo contagioso. Não sou mais membro de nenhuma igreja,
embora, de vez em quando, visite algumas. Jesus continua sendo o Senhor
de minha vida. Não sei se, um dia, voltarei a ser membro de uma igreja,
mas hoje eu e minha família não sentimos a menor falta disso”
Sônia Rafaella Tourinho da Rocha, 33 anos, é autônoma e foi
membro da Igreja Pentecostal da Rocha Eterna, em Campos (RJ), de onde
saiu depois de exercer o cargo de evangelista e diaconisa
“No meu ponto de vista, ficar em casa não torna ninguém afastado da
fé, mas é perigoso porque a pessoa pode acabar criando um evangelho
próprio. Considero importante frequentar a igreja não só pelo fato da
manutenção da fé como, também, pelo convívio com um conjunto de pessoas
diferentes. Assim, temos de nos adaptar uns aos outros e, juntos,
aprender a seguir a Cristo, apesar de nossas diferenças”
Natan Chagas, 28 anos, é auxiliar operacional e membro da Igreja Missionária Evangélica
Filadélfia, com sede em Curitiba (PR)
“Não frequento mais uma igreja evangélica. O que vivi e aprendi nela
constituiu uma base sólida para minha fé. E só. Agora, estou em busca de
uma relação com Deus livre de formalidades, regras, aparatos
estereotipados. Cansei de me dedicar e sustentar sistemas que, muitas
vezes, só servem a interesses e vaidades pessoais. Quem disse que
ministério de louvor, departamentos disso e daquilo e pastores são
indispensáveis? Quem disse que os melhores relacionamentos pessoais
acontecem dentro da igreja? Sei que há milhões de pessoas boas e
sinceras dentro das igrejas. Mas o meu Jesus, aquele que me salvou, está
acima disso tudo”
Alexandre Faria de Araújo foi membro da Igreja Ministério Apascentar de Nova Iguaçu (RJ)
Porta de saída
- 87% dos brasileiros se declaram cristãos
- 22,2% (cerca de 45 milhões de pessoas) da população brasileira são evangélicos
- 9,2 milhões deles se dizem “sem vínculo denominacional”
Fonte: IBGE
Acesso: 20/04/16
Fonte:
http://www.cristianismohoje.com.br/materias/especial/igreja-para-que